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Primeiro grito de liberdade dos negros’: conheça e ouça a língua Kalunga, falada dos tempos do Brasil Colônia até hoje em MG

Kalunga significa "fala, dizer, conversa" e foi a forma de comunicação de escravos e descendentes de escravos no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba desde o século XVIII.

Por Julia Barduco, g1 Triângulo — Patrocínio

 

Fazendas com milhares de escravos se distribuíam pela capitania de Minas Gerais no século XVIII. Negros de diversas etnias eram trazidos do continente africano com o intuito minerar preciosidades, no auge da exploração do ouro no Brasil, ainda colônia portuguesa.

Tanto é que, pouco tempo depois, no século XIX, Minas Gerais se tornou a capitania com a maior população de negros do país. É neste contexto que surge a “Língua” Kalunga, ainda falada em quilombos do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba, como um código secreto entre os escravos.

g1 conversou com dois falantes da Kalunga e um representante dos Quilombos das Famílias Teodoro de Oliveira e Ventura (ARQTOV) sobre a tradição, a resistência e a preservação do código. Além disso, trechos da fala foram compilados, ouça mais abaixo.

O primeiro grito de liberdade dos negros

 

A criação da Kalunga é incerta. Alguns propõem que suas origens estão nos antigos quilombos do Triângulo, outros, dizem que estão na fala dos tropeiros afro-brasileiros de Minas Gerais que passaram pela região.

Contudo, a explicação mais aceita é a de que, naqueles tempos de colônia, os negros em situação de escravidão precisavam de uma maneira de se comunicar. O português não era uma opção, uma vez que seriam compreendidos pelos senhores.

Os escravos eram de várias etnias, de diversas partes do continente africano, então não falavam a mesma língua nativa. E ainda que falassem a mesma língua — como o quimbundo, umbundo e kikongo, por exemplo —, os senhores costumavam entender o idioma mais falado entre os escravos.

Como ainda existia a barreira da língua entre eles, fizeram esse código. Pegaram palavras de várias línguas e etnias e criaram o que nós consideramos o primeiro grito de liberdade dos negros. Isso porque, com a Kalunga, eles podiam falar de seus senhores sem que ninguém entendesse“, explica Ângela Maria de Arvelos Ferreira, co-autora do livro Kalunga: a língua secreta dos escravos.

O livro de Marlenísio e Ângela foi premiado com o prêmio Rodrigo de Melo Franco de Andrade na categoria de 'salvaguarda de bens de natureza imaterial'. — Foto: Ângela Ferreira/Divulgação

O livro de Marlenísio e Ângela foi premiado com o prêmio Rodrigo de Melo Franco de Andrade na categoria de ‘salvaguarda de bens de natureza imaterial’. — Foto: Ângela Ferreira/Divulgação

O autor do livro, Marlenísio Ferreira, faleceu pouco após o lançamento do livro, em 2011. Ele era marido de Ângela e ambos levaram mais de 10 anos para fazer a coleta e registro das palavras do código que foram publicadas no livro. A obra foi publicada em Patrocínio, onde está o maior número de falantes conhecidos do código.

E também foi na cidade que a Kalunga se tornou a primeira língua registrada no Brasil como Patrimônio Cultural Imaterial. O processo de registro foi conduzido pelo Setor de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Patrocínio e registrado na Relação de Bens Protegidos do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha – MG).

Língua, dialeto e código

 

Mas Kalunga é uma língua, um dialeto ou um código?

Ângela explica que, entre os falantes da língua, chamados “kalungueiros“, a Kalunga é considerada um código de palavras. Ela foi passada pela oralidade de geração em geração, até hoje.

Possivelmente, uma das primeiras vezes que passou para o registro escrito foi quando Marlenísio e ela compilaram termos, frases e palavras no livro. Outro registro da Kalunga escrita está nos trabalhos de Steven Byrd, acadêmico de linguística que estudou falas afro-brasileiras em sua estada no Brasil.

A Kalunga saiu um pouco da oralidade, que sempre vai se perdendo, e passou para a escrita. Agora entrando no mundo digital. Pra gente é muito importante isso, mostrar e conhecer o passado, para se fazer uma história melhor“, relatou Ângela.

Tradição e preservação

 

Não se sabe quantos falantes da Kalunga existem atualmente. A estimativa é que a comunidade de kalungueiros tenha algumas dezenas de indivíduos, ou, com otimismo, uma ou duas centenas.

Existem outras regiões de Minas e São Paulo em que existem outras línguas Kalungas, com outros códigos. Mas a de Patrocínio é diferente“, explica Ângela.

A preservação da Kalunga, contudo, encontra duas dificuldades: primeiro, o fato de que existe certo desinteresse dos mais velhos em ensinar os mais novos. O motivo é que os falantes consideram a língua tão secreta, que dificultam o trabalho de pesquisadores como Ângela, Marlenísio e mesmo Byrd.

Ângela relata que os kalungueiros mais velhos não queriam que o trabalho dela e do marido fosse publicado. Segundo a co-autora, eles consideravam a Kalunga tão secreta, tão deles, que não queriam que a fala fosse a público.

A maioria dos kalungueiros, homens com 80, 90 anos – visto que a Kalunga não era ensinada à mulheres – se fossem ‘kalungar’ com alguém que não falava o código, diriam palavras faltando sílabas, para que a outra pessoa se perdesse e não conseguisse assimilar a fala.

Mas nós compreendemos ele, também. Isso é devido a toda a dor que essas pessoas vivenciaram. Em Kalunga existe a palavra dor, mas não existe a palavra amor. Não existem palavras de carinho“, conta Ângela.

 

Depois, entre os kalungueiros mais novos, que enxergam necessidade em passar a tradição às novas gerações, outro problema surge.

As crianças de hoje, ninguém mais quer aprender isso não. Chega a ser difícil de ensinar. Aqui, sou só eu mesmo que falo alguma coisa, não muito, mas alguma coisa“, conta José Barbosa, quilombola em Serra do Salitre.

Apesar disso, ações de preservação, como a realizada pelo governo de Patrocínio junto a IEPHA, estão sendo feitas para resguardar a memória do código e tentar passá-lo às novas gerações quilombolas.

O Museu de Patrocínio possui registros da Kalunga. O prédio, que data do Séc. XIX, tinha o segundo pavimento usado como residência e o primeiro era comércio e senzala.. — Foto: Fundação Casa da Cultura de Patrocínio/Divulgação

O Museu de Patrocínio possui registros da Kalunga. O prédio, que data do Séc. XIX, tinha o segundo pavimento usado como residência e o primeiro era comércio e senzala.. — Foto: Fundação Casa da Cultura de Patrocínio/Divulgação

A Associação dos Remanescentes dos Quilombos das Famílias Teodoro de Oliveira e Ventura (Arqtov), da qual faz parte o quilombo de José Barbosa, realiza um levantamento para confirmar quantos kalungueiros ainda existem na região.

Agora que estamos fazendo esse mapeamento [de kalungueiros], notamos que muitos faleceram e levaram essa riqueza com eles. Por isso vamos fazer oficinas para salvar esse patrimônio“, explicou José Ventura, presidente da Arqtov, que tem comunidades remanescentes de quilombos em Patos de Minas, Patrocínio e Serra do Salitre.

Ele explica, ainda, a importância de manter a língua viva como um sinal de resistência.

A Kalunga existe até como modo de sobrevivência do povo negro, era dominante aqui na região do Quilombo do Campo Grande do Líder Ambrósio. É um rico patrimônio que precisa ter a atenção do Iphan“, conta.

 

Em nota ao g1, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) informou que não tem ainda ação voltada à Kalunga. Informou, também, que até o momento não consta da lista de línguas incluídas no Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) e reconhecidas como Referência Cultural Brasileira. O instituto afirmou que não recebeu nenhuma demanda da comunidade linguística Kalunga relacionada à inclusão no INDL.

A Kalunga, o português rural e outras línguas

 

Algumas palavras utilizadas pelos kalungueiros são usadas em Minas Gerais fora da comunidade linguística. Qual mineiro, por exemplo, nunca falou a palavra “aprumar“? Ela é utilizada na Kalunga como um dos dois únicos verbos da língua, e é dita para descrever toda a ação que é “boa”. Ao mesmo tempo, a palavra “desaprumar” é utilizada para todas as ações negativas.

Dizer que se tratam de apenas dois verbos, contudo, talvez seja uma hipérbole. Isso porque todos – ou quase todos – os substantivos da língua podem ser transformados em verbosCuzeca, por exemplo, significa cama; cuzecar, significa dormir. Quinhama, é perna; quinhamar, caminhar.

De acordo com Steven Byrd durante a pesquisa “Calunga: uma fala afro-brasileira de Minas Gerais, sua gramática e história”, ambas as palavras “cuzeca” e “quinhama” são termos transferidos diretamente do banto para a Kalunga.

(A grafia do código com C ou K é referida em diversos locais, o g1 optou por seguir o utilizado por Marlenísio no livro citado acima).

O banto é um grande conjunto de línguas faladas principalmente na África subsaariana por cerca de 400 subgrupos étnicos diferentes. Quimbundo, umbundu e kikongo estão entre elas.

Os estudos de Byrd indicam, ainda, que existem palavras na Kalunga vindas do português. É o caso de “atuá”, que significa dia e possivelmente vem da palavra “atual”. Há, também, palavras vindas de línguas indígenas brasileiras que a Kalunga provavelmente adquiriu durante o período colonial.

Ouça

 

Ângela e José Barbosa falaram frases do código para o g1, ouça abaixo. Primeiro, eles dizem a frase em Kalunga e, em seguida, a tradução para o português.

O 'primeiro grito de liberdade dos negros'; conheça e ouça a língua Kalunga

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O ‘primeiro grito de liberdade dos negros’; conheça e ouça a língua Kalunga

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