DESIGUALDADE

Capítulo 4, Versículo 3 é hoje

A política pública do genocídio negro segue um sucesso.

Quando divulgamos a reportagem especial Quantos pretos você perdeu? nas redes sociais, na última quinta-feira, vários leitores lembraram de uma mesma referência: a introdução de Capítulo 4, Versículo 3, clássico de Sobrevivendo no Inferno, obra-prima dos Racionais MCs.

Primo Preto, “mais um sobrevivente”, manda a real: “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras. Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros. A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo”. A chuva de estatísticas que antecede a música se refere ao longínquo 1997, ano em que o disco foi lançado. Apesar de vários avanços, como as políticas de cotas e a ação que retringiu ações policiais em favelas durante a pandemia – obtidos às custas de muita luta do movimento negro –, as estatísticas narradas parecem ser sobre hoje. 

“Por que os negros morrem de mortes previsíveis e evitáveis o tempo todo?”, provocou a filósofa e ativista Sueli Carneiro em conversa com Mano Brown no podcast Mano a Mano. O genocídio negro continua em curso: chacinas, câmara de gás em camburão, chuvas que dizimam favelas, negligência médica na pandemia. Os dados sobre quem mais sofre e mais morre neste país são inquestionáveis, mas falta o reconhecimento público das políticas (e da falta delas) que deliberadamente matam pessoas negras no Brasil. 

Foi por isso que, em maio deste ano, a Coalizão Negra por Direitos entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal buscando que o estado reconheça a política de morte em vigor desde a chegada do primeiro africado escravizado ao Brasil. “A denúncia do movimento negro é secular, mas segue sem o devido amparo das instituições. Necessitamos que haja comprometimento público em reverter esse cenário”, disse a advogada Sheila de Carvalho, integrante da Coalizão Negra por Direitos e uma das autoras da ação.

A própria ação, em si, também lembra a intro de Capítulo 4, Versículo 3. Na peça jurídica, lemos que, embora o número absoluto de vítimas de homicídio tenha diminuído 33% entre 2009 e 2019, aumentou em 1,6% entre os negros. Em 2018, 58% dos lares com insegurança alimentar grave eram chefiados por pessoas autodeclaradas pretas ou pardas. 

Na apuração para a reportagem que publicamos, Martihene Oliveira empilhou mais e mais estatísticas: três em cada cinco vítimas de feminicídio são negras; 11,9% dos pacientes negros já se sentiram discriminados no atendimento médico; as chances de um paciente preto ou pardo analfabeto morrer de covid-19 são 3,8 vezes maiores que as de um paciente branco com ensino superior.

As evidências são inquestionáveis. Mas o que fazemos delas – e das causas delas? Depois de perder um amigo assassinado com nove tiros, Martihene decidiu contar quantos pretos havia perdido. Chegou ao número de 27. Depois, decidiu repetir a mesma pergunta para pessoas que vivem nas comunidades da Linha do Tiro, bairro recifense em que seu coletivo, o Sargento Perifa, atua. Cada um que ouviu contava 21, 26 mortes. Eram os filhos, as filhas, as mães, os pais, os amigos, todos vítimas de mortes evitáveis, que deveriam fugir do curso de uma vida digna, amparada e protegida. 

Com essa ideia na cabeça, Martihene decidiu se inscrever nas Bolsas de Investigações para Repórteres Negros que o Intercept lançou no final de 2020. Foi uma das escolhidas. Saiu a campo, então, para contar essas histórias de pessoas totalmente atravessadas pelo genocídio. Não é fácil ter essa conversa. São perdas e dores muito profundas. Por meses – e muito por causa de seu trabalho com comunicação comunitária no local – Martihene criou uma relação de confiança com os retratados para conseguir narrar suas dores. Isso porque Raquel, Carol e Dário são os rostos das estatísticas, mas não só eles. A própria Martihene também é. 

“A gente é a soma de tudo o que a gente viveu. Se a minha realidade fosse outra, talvez eu não fosse uma jornalista, nem uma jornalista de favela, como eu gosto de me intitular. Porque não foi uma coisa que eu não vivi. Foi uma coisa que eu vivi”, ela narrou no vídeo em que conta os bastidores desse trabalho. “A gente vai noticiando todos os dias o genocídio negro. Todos os dias as mesmas notícias. Morreu mais um. Está perdendo o sentido”. 

Às vésperas da publicação, mais uma tragédia. A reportagem iria sair no último sábado, dia 28. Mas vieram as chuvas no Recife, que destruíram justamente a região em que ela atua e onde vivem os personagens da reportagem. O coletivo começou um trabalho intenso de coletar doações e ajudar os afetados, alguns deles em condições de extrema precariedade, passando fome. 

Já são 121 mortos pela chuva no Recife – e nós não precisamos te dizer qual é a cor que predomina entre eles. O genocídio negro não dá trégua.

No começo, Martihene contava 27 perdas. Na finalização da reportagem, eram 31. Ontem, já eram 34. “Quantos pretos ainda vamos perder?”, questionou Dário, outro personagem ouvido por Martihene. Cada um desses números é uma vida que deveria ter sido como a sua, com família, amigos, amores. 

Martihene teve muita sensibilidade para dar rostos às estatísticas. Convidamos vocês a ler esses relatos e assistir aos vídeos. Ao final, faça a pergunta a si mesmo: quantos pretos você perdeu?

Botão Voltar ao topo
Fechar