História

O que Lula disse à Folha em 1994

Em entrevista histórica a Otavio Frias Filho, Clóvis Rossi e Matinas Suzuki Jr., petista falou sobre militares e outros temas atuais

  • 20.ago.2022 às 23h15
Naief Haddad
Naief Haddad

Repórter especial da Folha

[RESUMO] Neste domingo (21) em que se completam quatro anos da morte de Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, o jornal republica, com trechos inéditos, entrevista que ele —acompanhado do então editor-executivo Matinas Suzuki Jr., do repórter especial Clóvis Rossi (1943-2019) e do repórter fotográfico Jorge Araújo— realizou com Lula, pouco antes da eleição de 1994, quando FHC também foi entrevistado. Hoje, as respostas sobre militares, privatizações e Congresso ajudam a entender um pouco mais o petista, novamente candidato.

Em 1994, a força e a influência de um jornal eram medidas, entre outros fatores, pelo número de exemplares que imprimia diariamente. Naquele momento, como nas décadas anteriores, tiragem era o substantivo que fazia a alegria ou tirava o sono de empresários da imprensa e de jornalistas.

A palavra apareceu no alto da primeira página da Folha de 14 de agosto daquele ano: “Edição histórica com tiragem recorde de 1.117.802 exemplares”. A marca seria superada em março do ano seguinte, com a impressão de 1,6 milhão.

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Entrevista da Folha com Lula ás vésperas da eleição de 1994; partir da esquerda, o então repórter especial da Folha Clóvis Rossi, o então diretor de Redação Otavio Frias Filho, Ricardo Kotscho, assessor de imprensa de Lula, Matinas Suzuki Jr., então editor-executivo da Folha, e Lula  – Folhapress

Naquela época, a internet engatinhava no Brasil. A Folha Web, primeira versão online da Folha, só seria lançada no ano seguinte. Hoje, o jornal conta com 30 milhões de visitantes únicos, em média, por mês.

Aquele domingo, 28 anos atrás, marcava o lançamento do primeiro fascículo de um atlas, que acompanhava a Folha, e a Redação preparava um material especial.

Duas entrevistas com os líderes apontados por pesquisa Datafolha para a eleição presidencial, que aconteceria menos de dois meses depois, estavam entre os destaques da edição. Fernando Henrique Cardoso (PSDB), candidato ao Planalto pela primeira vez, e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que buscava a vitória em sua segunda tentativa, ocupavam, cada um, duas páginas do jornal.

Ambos foram ouvidos pelos mesmos jornalistas: o então diretor de Redação da Folha, Otavio Frias Filho, o editor-executivo à época, Matinas Suzuki Jr., e o repórter especial Clóvis Rossi. Jorge Araújo era o repórter fotográfico.

As entrevistas foram publicadas em um momento-chave da corrida eleitoral de 1994, o ponto de virada. Dois dias antes, o Datafolha havia revelado que, pela primeira vez, FHC aparecia à frente de Lula nas intenções de voto, com 36% contra 29%. A partir daí, a diferença entre eles aumentaria, permitindo que o postulante do PSDB liquidasse a disputa no primeiro turno, em 3 de outubro.

A reviravolta era impulsionada pelo Plano Real, implantado em fevereiro de 1994, quando o Ministério da Fazenda do governo Itamar Franco estava sob o comando do tucano.

Eram, no entanto, recorrentes as dúvidas sobre a eficácia do plano a longo prazo. O fracasso de apostas anteriores, como o Cruzado 1 e o 2, ambos no governo José Sarney, estava vivo na memória dos brasileiros.

Em texto sobre os bastidores da entrevista com Lula, Otavio expunha a incógnita. “Ninguém sabe se o otimismo com o Real veio para ficar ou corresponde à euforia que tem acompanhado os primeiros meses de qualquer plano econômico”, escreveu o jornalista, que morreu há quatro anos.

“Foram medidas duras contra quem não deveria sentir medidas duras”, afirmou Lula sobre o Real na entrevista.

Quatro anos depois, em outra declaração à Folha, o petista reconheceria os avanços proporcionados pelo Real, mas permanecia em desacordo com a política econômica. “A estabilidade é, de fato, um valor”, disse.

“Mas só temos uma estabilização monetária, sem nenhuma estrutura social e com a economia fortemente vulnerável. Os pilares da estabilidade são o câmbio e os juros, mas não temos política industrial.”

A entrevista com Lula reproduzida nesta edição aconteceu em 9 de agosto de 1994, terça-feira, em um sobrado onde funcionava a produtora do programa eleitoral do PT, na Vila Olímpia, bairro da zona oeste de São Paulo. Também estavam na sala Rui Falcão, então presidente do PT, e Ricardo Kotscho, assessor de imprensa do petista, hoje colunista do UOL.

Como observou Otavio, Lula trazia em um pulso um relógio Omega de aço e no outro uma fita de Nossa Senhora da Purificação, presente de dona Canô, mãe de Maria Bethânia e Caetano Veloso.

“A entrevista começou tensa, talvez em função de dois processos judiciais que o candidato e o próprio PT estão movendo contra a Folha, por conta de publicações que desagradaram”, escreveu o diretor de Redação. “No final, mais à vontade, Lula chegou a dizer, indicando o fotógrafo do jornal: ‘Com esse brinquinho, no meu governo não entrava’ e deu risada, abraçando-o.”

Rossi, que morreu há três anos, e Matinas fizeram algumas perguntas incisivas ao petista. Otavio, entretanto, foi quem questionou Lula de modo mais contundente, assim como fez na entrevista com FHC. “Como diretor de Redação, ele sabia que precisava mostrar a independência do jornal”, diz Matinas.

Foi Matinas, aliás, quem ficou com as fitas da entrevista de uma hora e meia com Lula. Permaneceram guardadas por mais de 20 anos na casa dele, até que as reencontrou e as entregou ao jornal em 2018.

No jornalismo, são raras as entrevistas publicadas na íntegra. Em geral, acontece da seguinte forma: depois da conversa, o entrevistador ou os entrevistadores fazem uma primeira seleção de perguntas e respostas consideradas mais relevantes para os leitores. Esse trabalho é posteriormente complementado em interação com os editores.

Não foi diferente no jornal publicado em agosto de 1994. A Folha destacou na edição comentários de Lula sobre possíveis ministros em caso de vitória e outros assuntos quentes à época, que naturalmente soam datados hoje.

Por outro lado, alguns temas que hoje ganharam mais relevância foram preteridos na hora da edição, como as opiniões do candidato sobre as Forças Armadas. Diferentemente do que acontece hoje, o comportamento dos militares no cenário político não gerava grandes preocupações em 1994.

Agora, Lula está de volta a uma disputa pelo Planalto. Desde 1994, o petista parece viver em uma montanha-russa, com loopings inimagináveis: perdeu aquela eleição e a seguinte, em 1998, ambas para FHC; ganhou em 2002 e se reelegeu quatro anos depois; elegeu sua sucessora, Dilma Rousseff, em 2010; foi condenado em 2017, preso em 2018 e solto no ano seguinte; em 2021, recuperou seus direitos políticos; neste mês de agosto, oficializou sua sexta candidatura à Presidência.

Ao longo desses quase 30 anos, algo, porém, se manteve. Lula era e continua sendo o principal líder da esquerda do país. Por isso, as respostas do candidato de 48 anos podem ajudar a entender o mais uma vez candidato, agora com 76. A seguir, alguns trechos daquela histórica conversa, em que Lula fala sobre o Congresso, militares, reações do empresariado e dos eleitores e privatizações.

RELAÇÃO COM O CONGRESSO

Se o sr. for eleito, provavelmente não terá maioria partidária no Congresso Nacional. Se for negociar, vai levar um tempo grande. Como seria esse primeiro momento? Eu tenho dito sistematicamente que não vejo dificuldade no relacionamento com o Congresso. Minha experiência é que toda vez que o governo quer aprovar uma coisa, ele consegue aprovar.

Às vezes tem que dar muita coisa. O “dar muita coisa” é porque não existe corrupto sem corruptor. Você percebe que, em amplos segmentos da sociedade, existem pontos comuns sobre a necessidade de uma política tributária nova para o país. Se você parte da sociedade civil para o Congresso, a tendência natural é ter facilidade de aprovação no Congresso Nacional.

O sr. pressupõe que vai começar a governar, caso eleito, em minoria no Congresso? O meu pressuposto é que vou governar em maioria: ou você faz a maioria fora, ainda no processo eleitoral, ou faz a maioria dentro do Congresso. Sou muito mais favorável às maiorias pontuais do que à maioria permanente. Acho que tem que estabelecer uns quatro, cinco grandes projetos e negociar isso no primeiro mês de governo, se possível negociar até antes.

AGRICULTURA E FOME

O que, simbolicamente, elegeria como primeira medida de governo? Eu queria falar da política agrícola e da fome, que são coisas simbólicas para nós. Não acredito que se consiga acabar com nenhum dos problemas do Brasil em um dia, o que nós queremos é apontar: quais as grandes coisas que vamos atacar, a obsessão nossa de resolver imediatamente.

Precisamos anunciar que o crédito agrícola será para o pequeno e médio produtor agrícola. Nós iremos resolver o problema dos assentados que estão acampados hoje, no primeiro momento. É uma vergonha ter 50 mil pessoas na beira das estradas em um país com a quantidade de terras que tem o Brasil.

Outra coisa, a política tributária. É ela que vai dar os instrumentos para fazer os investimentos necessários na educação e na saúde, que são prioritárias para nós. Se resolvermos isso, estaremos dando um passo extraordinário.

Outra coisa é o combate à fome. Quando nós entregamos o projeto ao Itamar [proposta de segurança alimentar idealizada pelo governo paralelo do PT, criado após a posse de Fernando Collor, em 1990], eu pensava que teria sequência porque o projeto não termina com a política de solidariedade. É muito mais do que isso, tem metas de geração de empregos, e o Itamar não fez nada.

Então, nós temos que continuar com a campanha de solidariedade para garantir que as pessoas possam comer, no mínimo, três vezes ao dia, e temos que ver todas as fontes de investimento que possam gerar empregos imediatos.

Por isso, colocamos que cuidar da saúde não significa médicos e hospitais, significa saneamento básico, porque você vai melhorar a qualidade de vida das pessoas e vai gerar emprego. Consequentemente, vai gerar o mínimo de distribuição de renda.

Dá para concluir que a política do atual governo em relação à inflação no Plano Real está correta e o que está incorreto é o aspecto social dessas políticas? O que está equivocado, na minha opinião, são os pressupostos do plano. Foram medidas duras contra quem não deveria sentir medidas duras. Não temos nada contra a moeda. Aliás, para mim, se for cruzeiro, dólar, libra esterlina e der para comprar o que comer, não tem problema.

O problema é que os pressupostos causaram prejuízos às pessoas, tanto a implantação do plano social de emergência quanto a média dos quatro meses da URV [Unidade Real de Valor, uma moeda virtual que servia como indexador] sem controle de preço. É só ver a distância que a cesta básica ficou do salário mínimo. Não adianta fazer propaganda agora que está baixando, é preciso saber quanto era antes do começo do plano.

A segunda coisa. Ainda não mexemos em duas coisas cruciais no Brasil, os oligopólios, que precisam ter regras mais definidas, e o sistema financeiro, que é tão ou mais moderno que o sistema financeiro de qualquer país do mundo, e tem uma facilidade tremenda de se adaptar a qualquer realidade e continuar ganhando dinheiro e especulando.

Enquanto, no mundo desenvolvido, o sistema financeiro tem uma incidência no PIB (Produto Interno Bruto) menor, no Brasil é muito alto. Precisamos dotar o sistema financeiro de condições objetivas de sobreviver financiando a produção, sabe? Isso iria contribuir para reduzir a inflação.

ELEITORADO MENOS CONSERVADOR

Os empresários começam a lançar campanhas mais fortes contra sua figura, há novamente um clima para isolar o PT. Todo o seu trabalho para mostrar que está aberto ao diálogo vive um momento de indefinição. É impossível conversar com os outros setores da sociedade? O eleitorado brasileiro, no fundo, é conservador? Eu acho que o eleitorado brasileiro deu demonstrações, já em 1989, de que evoluiu, de que aos poucos está se liberando do coronelismo da política, da subserviência eleitoral a que o Brasil sempre esteve submetido.

O fato de eu ter tido aquela votação em 1989 [obteve 47% dos votos no segundo turno contra Collor, que venceu a eleição] é uma demonstração de que existe uma parcela da sociedade com disposição para mudar.

Em 1989, nós tínhamos um comitê de microempresários, hoje temos vários comitês de empresários no Brasil inteiro. É lógico que há uma grande maioria de empresários ainda conservadores e, obviamente, o empresário que não pensa no país, que não pensa socialmente, mas só pensa nele próprio, tem que ser conservador, ele tem que conservar.

Sou um homem muito satisfeito com a evolução que houve na nossa relação com o empresariado. Acabamos com o medo, com aquele terrorismo que se vendeu contra nós em 1989. Hoje, pode haver algum setor que ainda tenta jogar esse terrorismo, mas já não cola mais, não tem mais o impacto de 1989.

Conseguiria resumir qual a sua atitude em relação às privatizações? Os setores considerados estratégicos —eu vou dar dois principais, petróleo e telecomunicações—, nós não iríamos privatizar, a não ser que daqui alguns anos eles mudem e não sejam mais importantes como são hoje.

Na questão das telecomunicações, o que o modelo brasileiro é? É uma espécie de modelo europeu, e acho que deve continuar sob o controle do Estado, que pode fazer concessões na produção de equipamento, como faz hoje. No setor hidrelétrico, é possível fazer parcerias.

Tenho dito aos empresários: “Por que vocês querem privatizar o que existe e não se propõem a construir o que falta? Não era muito mais prudente? Vamos fazer uma parceria e construir o que falta? Vocês querem privatizar a Via Dutra? Por que não vão fazer a BR-116? Vocês querem privatizar essa ferrovia falida que está aí? Por que não vamos construir as que faltam?”.

O Estado pode fazer concessões e parcerias. O que é preciso é tirar essa questão da privatização da guerra ideológica, ou seja, no Estado nada presta, na empresa privada tudo é bom.

Fora essas duas áreas que citou, petróleo e telecomunicações, o resto vai privatizar? O que não for estratégico é privatizado. Eu disse sobre a questão das hidrelétricas… Em vez de privatizar as que existem, elas poderiam ficar como reguladoras do processo. Vamos construir o que falta (e faltam muitas), nós precisamos gerar emprego.

Vamos chamar a iniciativa privada e falar o seguinte: “Vamos fazer aqui um sistema de concessão ou vamos trabalhar em parceria, o Estado entra com uma parte e vocês entram com outra”.

Tudo é possível de ser feito se houver vontade política, não apenas do governo, mas também do empresariado.

Em termos de ritmo das privatizações, a ideia é acelerar, retardar ou manter? A primeira coisa que alguém sério vai fazer neste país é o levantamento da situação dessas empresas. Quais são elas? Durante o regime militar, muita coisa foi estatizada para salvar amigos ou para dar emprego para coronel reformado.
Nós vamos ter que fazer um levantamento dessas empresas. Como elas estão funcionando? Aquilo que considerarmos que a iniciativa privada pode tomar conta, poderá ser privatizado sem problema.

FHC

Pretendo fazer a mesma pergunta para o Fernando Henrique, pode me responder em uma palavra. Qual é a principal qualidade que o senhor vê no Fernando Henrique Cardoso? Eu já vi mais [risos]. Acho que a qualidade que o Fernando Henrique tem é ser um grande intelectual, a nossa briga política não impede que eu reconheça ele como um grande intelectual.

Tem algum presidente brasileiro que acha que foi bom? A gente não pode negar que o Getúlio Vargas deu um salto para este país sair de uma economia primária para um processo de industrialização, construindo as bases para o processo de industrialização.

O Juscelino teve um momento importante, que foi o Plano de Metas que estabeleceu para o país. Fora disso, acho que os presidentes passaram a ser a mesmice.

Não reconhece nenhuma virtude nos governos militares? Dizer que não reconheço seria exagero, acho que eles trabalhavam com plano de desenvolvimento mais amplo do que o mandato do presidente.

É uma coisa que não acontece hoje na política, as pessoas fazem um projeto para quatro anos, mas em quatro anos não é possível um projeto para o país. É por isso que, na agricultura, nós colocamos projetos para cinco, dez anos.

Tem que ter um plano de metas mais longo para o país, essa foi uma virtude dos PNDs (Planos Nacionais de Desenvolvimento) que os militares fizeram. Qual foi o grande erro deles, além da ausência da democracia? É que permitiram, como ninguém, a concentração de renda neste país, ou seja, a falta de liberdade fez com que uns poucos se apoderassem de quase tudo.

Haveria alguma circunstância que te levaria a determinar uma intervenção das Forças Armadas? Não acho que seja necessário utilizar as Forças Armadas fora dos parâmetros em que elas têm que agir, que estão previstos na Constituição. As Forças Armadas existem para cuidar da nossa defesa contra inimigos externos, não para resolver nossos problemas políticos.

Tem uma posição sobre o Ministério da Defesa? Sou favorável, deveremos fazer gestões para tentar implantá-lo o mais rápido possível.

Os ministros militares já estão na cabeça? Olha, rapaz, quem tem ministro general não tem problema [em tom de brincadeira].

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