Artigo

A outra dimensão da Unesp

UNESP Jaboticabal – foto G1
*Maria Encarnação Beltrão Sposito
À medida que as Ciências Sociais começaram a se estruturar no século XIX, como um campo científico importante, no início à luz de princípios das Ciências Biológicas e Exatas, foi se tornando consensual a importância de se considerar múltiplas dimensões na análise de fatos, dinâmicas e processos, entre elas a econômica, a política, a social e a cultural, Igualmente, nunca houve dúvidas sobre a relevância de se relevar o tempo, como dimensão maior e categoria central para se compreender o movimento da sociedade.
Um século se passou até que a dimensão espacial começasse a ser reconhecida como igualmente significativa nas análises. Hoje cada vez maior número de pesquisadores, não apenas da Geografia, superam a visão de espaço como palco dos acontecimentos para vê-lo como uma dimensão que é, também, condicionante tanto das permanências como das mudanças no mundo. Penso que, em relação às três universidades paulistas, este aspecto também deve ser objeto de atenção.
Tendo em vista, de um lado mais amplo, a grande crise de natureza ética e política, que vive o Brasil no período atual e, de outro mais restrito, as dificuldades de natureza orçamentária, a que estão submetidas as três universidades paulistas – UNESP, Unicamp e USP – face à queda da arrecadação do ICMS, alguma coisa se tem escrito e muito se tem falado sobre a relevância ou não de haver ensino superior público e gratuito no país. Ainda que seja difícil alguém escrever diretamente contra a sua permanência, em grande parte das situações, a leitura dos argumentos apresentados levaria o leitor a colocar em questão este tipo de investimento.
Penso que são, no geral, argumentos frágeis, porque se alicerçam naquilo que é conjuntural e/ou periférico (a atual crise econômica, a suposta falta de capacidade das universidades de controlar adequadamente seus gastos ou, ainda, a constatação de que há filhos da classe média e alta nas universidades públicas paulistas, o que seria um indicador de que ela deveria ser paga). São mais frágeis ainda, porque deixam de considerar o que é estrutural e/ou central numa sociedade como a nossa: a histórica desigualdade que nos marca, desde o período colonial, expressa em matizes de natureza socioeconômica, que são também e essencialmente políticos e culturais, transformando tais desigualdades (grau) em profundas diferenças (qualidade), que nos rodam cotidianamente e que precisam ser enfrentadas, se queremos superar a grande crise e se pretendemos construir outro país, outra sociedade e outra universidade.
Considero que, para compreender a situação e o papel da UNESP, é fundamental levar em conta não apenas aquelas dimensões que as Ciências Sociais reconheceram desde sempre, mas colocar em relevo e, talvez, em posição até mais importante que as outras, a dimensão espacial, aquela que explica com prevalência sua origem, seu processo de consolidação e sua história mais recente.
Nascida, em 1976, da união de faculdades isoladas, demorou a se compreender como universidade, justamente em decorrência de sua situação multicampus, que foi, então, decorrência e não escolha. Os custos econômicos, políticos e de gestão de fazer a articulação entre estas faculdades e as demais unidades que foram sendo implantadas desde a origem da UNESP até muito recentemente, tanto quanto os desafios decorrentes de culturas organizacionais diversas não foram poucos e, ainda, não o são. Por esta razão, os custos e os desafios, muitas vezes, são interpretados como os nossos ônus, quando nos comparamos com a USP e a Unicamp, por exemplo. Precisamos de mais recursos para fazer a gestão desta estrutura multiterritorializada garantindo a construção do diálogo de uma construção democrática de universidade; temos mais de um curso em várias carreiras tanto como decorrência da origem da UNESP como em função da continuidade de atendimento de demandas regionais; demoramos mais a construir nossa identidade uma vez que nossa origem histórica e nosso presente é plural e precisamos, continuamente, confluir para objetivos que são centrais; lidamos corriqueiramente com o problema das distâncias e sabemos que desenvolver pesquisa e produzir conhecimento sem estarmos concentrados é um pouco mais difícil.
No período em que o Governo do Estado de São Paulo propôs às três universidades paulistas uma ampliação de sua ação, cada uma delas fez uma escolha diferente, o que parece muito interessante, sem que o caráter complementar das escolhas tenha sido efetivamente pensado a priori, mas possa ser reconhecido, agora, a posteriori. A USP criou, sobretudo, o campus Zona Leste e reafirmou sua condição essencialmente metropolitana. A Unicamp optou, prevalentemente, por abertura de vagas noturnas estendendo seu perfil, visto como mais tecnológico, a alunos, em tese, de estratos socioeconômicos menos privilegiados. A UNESP reafirmou sua história e ampliou suas bases espaciais, por meio da instalação de oito novos campus, paralelamente à abertura de novos cursos nos campus já existentes.
A opção da UNESP, neste momento, decorreu de pedido do governador para atender demandas regionais de correligionários? Foi a opção da própria universidade para dar cobertura territorial a parcelas do Estado de São Paulo ainda não atendidas pelo ensino superior gratuito e de qualidade? Neste texto, não interessa responder estas perguntas, porque parece mais importante colocar foco no que é o essencial: reafirmarmos nossa condição essencial que é a espacial.
Passamos da fase de tratar dos ônus que nossas heranças e nossas escolhas trazem para reconhecer seus bônus: – viver a oportunidade de ver a realidade, de outro ponto de vista espacial, social, cultural e político; – ter a chance de trabalhar com problemas científicos e tecnológicos de mesmo tipo e importância que outras universidades, mas também de lidar com os que são apresentados em outros contextos socioespaciais; – experimentar a chance de atender alunos que não teriam condições socioeconômicas de se deslocar para estudar nas grandes cidades, mas sem deixar de receber, nas médias onde está a UNESP, alunos oriundos das grandes cidades paulistas, de outros estados da federação e de outros países; – distribuir melhor territorialmente seus investimentos e os dividendos de seu orçamento, seja sob a forma de infraestrutura, equipamentos e massa salarial, seja por meio da atração de novos moradores para as cidades onde está; – atender científica e tecnologicamente demandas urbanas que são essenciais no mundo contemporâneo, mas também as que se assentam no espaço rural, tanto porque a incorporação de ciência e tecnologia é veloz no campo brasileiro, como porque os problemas sociais e políticos que decorrem desta modernização precisam ser analisados e criticados pela Universidade.
Hoje presente em 24 cidades, nos quatro cantos do Estado de São Paulo, a UNESP precisa ser vista pelos paulistas e pelos seus governantes também, a partir desta sua condição espacial, compreendida cada vez mais por seus alunos, docentes, pesquisadores e técnico-administrativos como o nosso grande bônus.
Por estarmos assim estabelecidos espacialmente, nosso modo de realizar as três dimensões fundamentais da vida universitária – ensino, pesquisa e extensão – é um pouco diferente daquele como se dá a consecução delas em outras universidades. Posso mesmo afirmar que para realizá-las, trabalhamos na direção de contribuir para a melhoria das outras dimensões, as que são importantes para o conjunto da sociedade – a econômica, a política, a social, a cultural, a temporal.
Para a Unesp, articular estes dois planos, o da sociedade e o da universidade, realiza-se cada vez mais pela dimensão espacial, a que estamos condicionados e que ajudamos a reconstruir cotidianamente por meio do nosso trabalho, em cada uma das regiões onde estamos atuando, sem deixar de saltar escalas geográficas e nos articularmos na escala nacional e internacional.
*Maria Encarnação Beltrão Sposito é professora dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp de Presidente Prudente.

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